terça-feira, dezembro 11

Laços Firmes Esquecidos

Pegando uma leve carona no curta vencedor, lembrei-me de que havia escrito um conto com uma idéia de laços entre as pessoas. Resolvi postar. Se você aprecia um texto feito com vontade, boa leitura!
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Laços Firmes de Lado

Entrou pela porta da frente sem preocupação alguma sobre seu estado. A gravata frouxa, arregaçada, o paletó que lhe vestia em apenas um dos ombros, havia todo um cenário, um enredo.

Entrou com a mão direita apoiando a testa suada, cujos mesmos dedos cerravam a brasa do cigarro que a cada passo diminuía e cuspia cinza por cinza. Seus olhos preocupados apontavam para o chão, e parecia que ele estava determinado a fazer alguma coisa. Ninguém sabia exatamente o que era.

Andou até seu escritório, que parecia esculpido num carvalho mais escuro, brilhoso, e da poltrona de couro separou cachimbo, fumo e fósforos em cima de sua escrivaninha. Levantou-se como se estivesse, naquele momento, completado o que havia de fazer de tão importante e se pusesse a par de outras atividades. Afrouxou o cinto, tirou paletó, gravata e desabotoou duas casas da camisa. Estava completamente suado e decidiu tomar um banho.

Depois de recomposto, preparou seu cachimbo com um fumo forte de maçã, passou a mão no pacote e nos fósforos e partiu em direção à varanda, que ficava no mesmo andar do escritório, na parte de cima. Sentou-se defronte a Avenida Central movimentada de mascates, assalariados voltando para suas casas. Numa fagulha pesada, o cortiço inteiro cheirou maçãs. Descansava seu corpo em tragadas volumosas que, pela sua expressão, traziam bons pensamentos.

Aos poucos, foi passando a mão pelo cesto que ficava ao lado direito da cadeira, ambos de vime, e viu que não havia revista nem jornais. Lentamente e até gentil, espantou o cesto com dois chegas-pra-lá. Continuava fumando firme e admirando a avenida, no momento em que viu um vulto claro cortar suas vistas seguido de um estampido surdo e seco. Levantou, se debruçando no pára-peito e viu que uma mulher havia, enfim, caído do prédio em frente. A montanha logo se fez em volta do hidrante que havia, praticamente, partido a moça em dois.

Não conhecia a mulher, mas foi o bastante para que as tragadas fossem ficando cada vez menos volumosas. Como se quisesse colocar mais daquele ar para dentro de si. O cachimbo lhe tirava a atenção, e não queria estar disperso. Seria isso? Bateu a boca do cachimbo no cesto vazio de vime e deixou-o ali do lado das outras miudezas. Dobrou as mangas da camisa e se ajeitou, de uma vez por todas, na varanda.

Tentava observar aquilo tudo de um outro modo. Enxergava na curiosidade uma falha, um aleijão. Afinal sabia por que aquilo fazia tanto sentido. Montoeiras de homens e mulheres a exalavam a cada fatalidade. Não poderia tratar-se, portanto, de uma virtude. Lembrava, naquela névoa de pensamentos que se embaraçavam por trás do olhar já desfocado para o hidrante de como foi difícil ver seu pai naquele estado. Morto no meio da rua a tiros. O rosto sujo de terra, um filete de sangue cortava do pescoço até o supercílio esquerdo, na direção em que seu olhar estava e todo o seu corpo também. Aquilo lhe angustiou. Acendeu o cachimbo outra vez. O centro voltou a cheirar maçãs.

A tarde terminou de cair. Entrou por um instante e voltou com uma garrafa de licor de canela. Após servir-se de um bom copo, sentou-se à varanda vendo os últimos movimentos. Não buscou informação alguma com seus cicerones. Seu único contato com a pobre moça era a visão talvez compartilhada de seu nefasto fim. Ah, sim, havia um forte laço com o assassinato de seu pai. Lembrou-se de como doía vê-lo ali, e num dado momento, derrubou licor, cesta e fumo pelo piso e se agarrou ao seu próprio corpo. Fechava os olhos, rígido e certo de que sabia o que estava sentindo. Sem o menor vínculo, diante da morte, ele a amou como pai.

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